“(…) procuremos na experiência histórica,
no passado e naquela que está em curso,
mais que simples exemplos: procuremos lições”
(Netto; 2008: 2)
A história do Serviço Social percorre vários contextos e épocas, edifica-se e consolida-se ao longo de diferentes períodos sociais, económicos, políticos e ideológicos que potenciaram a sua emergência, a sua evolução e a sua (re)definição. O Serviço Social desenvolve-se ao longo de uma trajectória marcada pela heterogeneidade, hibridismo, complexidade, de acordo com diferentes perspectivas e significados em relação à profissão.
Olhar a história à luz das diferentes fases do percurso do Serviço Social, possibilita-nos organizar a memória e confrontar-nos com o “facto social – «ajuda aos outros» – dentro de diferentes épocas (…) e em relação ao contexto social em que opera (…) [e] assim compreender o presente através do passado e reconstruir o passado a partir do que sabemos do presente” (Vieira; 1989: 14). Permite conhecer e enquadrar o passado, compreender o presente e construir o futuro com consistentes conhecimentos teóricos e metodológicos capazes de responder aos novos e velhos problemas sociais.
Existem autores, como Martins (1999) e Mouro (2001), que analisam a história do Serviço Social, agrupando-a em diferentes períodos ou fases. Partindo desses contributos, mas de uma forma mais genérica, a análise aqui apresentada irá focar duas fases: Serviço Social clássico/ tradicional e Serviço Social em tempos de reconceptualização. A análise percorre estes marcos por se considerar que constituem momentos estruturadores e representativos da evolução e do desenvolvimento do Serviço Social. Contudo, nesta pequena apresentação não será possível aprofundar todos os elementos históricos relevantes destas fases, mas apenas os mais representativos que permitam, mesmo assim, um enquadramento e compreensão da evolução do Serviço Social.
Serviço Social na sua emergência
O Serviço Social foi gerado como uma actividade de «fazer o bem» (Richmond; 1950:3), como uma acção que ganhou forma através da caridade, protagonizada por um voluntário – uma pessoa da boa vontade que se colocava ao serviço dos outros, estruturando-se como “(…) o vértice de uma relação triangular: ele não tem o problema e não tem a solução, mas articula o problema e a solução, pois tem a vontade e a disposição para colocar-se ao serviço dos outros de acordo com o que a doutrina estipula” (Bertran e Muscolo; 2008:18). Deste modo, a prática foi sendo desenvolvida assente no assistencialismo e materializada através de um conjunto de actividades baseadas na fé, na experiência e na intuição com o principal objectivo do combate à pobreza, realizado por instituições como, por exemplo, as Charity Organization Society.
Porém, nos finais do séc. XIX surge uma nova forma de ajuda social, decalcada do voluntariado praticado até então, que ocorre como resposta às necessidades sociais que assumiram novos contornos com o despoletar da Revolução Industrial. Com o surgimento das cidades, da divisão do trabalho, do assalariamento e do êxodo rural, ocorrem mudanças profundas na estrutura da vida individual e da organização social dos grupos e das instituições, o que dá origem ao que ficou conhecido como “Questão Social”.
A Questão Social pode ser designada como o “conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista “madura” e tem uma raiz comum: o facto de a produção social ser cada vez mais colectiva, tornando o trabalho amplamente social, enquanto que a apropriação dos seus frutos se mantém privada, monopolizada por partes da sociedade” (Iamamoto; 2001:27). Assim, a Questão Social norteou as relações, que foram sendo cada vez mais antagónicas, entre a esfera capitalista e a classe operária, uma vez que a economia capitalista não produzia o equilíbrio do mercado, nem tão pouco assegurava as garantias sociais dos trabalhadores. É neste contexto que surgem as primeiras propostas para a criação de políticas sociais, formando-se uma conjuntura essencial para o exercício do Serviço Social.
A acção do Serviço Social foi sendo desenvolvida maioritariamente com base em pressupostos de regulação, normalização e moralização da classe burguesa em relação à classe operária, ou seja, acreditava-se que as “questões sociais” que derivavam da Revolução Industrial, colocavam em causa a ordem social e o modo de vida burguês, tornando-se necessário intervir e mobilizar os operários e os pobres a adoptarem comportamentos socialmente aceites, assim como as normas e os valores que predominavam na sociedade burguesa. A acção do Serviço Social encontrava-se fechada sobre si, associada à ordem moral e à ajuda voluntária ao próximo.
As desigualdades agudizaram-se, surgiram novas problemáticas e novas necessidades às quais a sociedade não estava preparada para responder, até porque os objectivos da sua acção eram externos ao problema, não tinham em conta as suas características e especificidades, apenas se regiam pelo compromisso da relação que o voluntário tinha com as suas “crenças e convicções: a religião e a fé; a ética e os princípios morais” (Bertran e Muscolo; 2008:18). Assim, tendo em conta o contexto social em que se vivia e a falta de qualificações e formação das voluntárias, tornou-se fulcral formar profissionais especializados. Este foi um dos primeiros passos para a institucionalização e profissionalização da ajuda do Serviço Social como profissão.
Num contexto de extensa e desprotegida desigualdade social, o Estado viu-se obrigado a tornar-se um actor interventor com o objectivo de regular a acção dos indivíduos pobres, de modo a que estes adoptassem os valores e os modelos de comportamento socialmente aceites e dominados pela classe burguesa. De acordo com esta perspectiva privilegiava-se uma acção assente nos indivíduos pobres, em detrimento do fenómeno de pobreza, ou seja os problemas sociais, eram encarados como problemas individuais.
Porém esta acção, que era preenchida por valores de ordem moral e religiosa, vai sendo colocada em causa por uma outra visão, de cariz laico, onde encontramos uma prática social crítica, materializada, por exemplo, nas organizações que nascem de movimentos feministas, como as Hull Houses, fundadas nos EUA por Jane Addams ou os Settlements em Inglaterra. Estas organizações e movimentos deixaram emergir uma concepção de Serviço Social, onde está subjacente uma visão integrada, holística e contextualizada dos problemas, que entende que estes não podiam ser analisados isoladamente, mas sim tendo em conta cada indivíduo e as suas condições sociais e económicas (Garnier; 1999: 26). É neste contexto histórico internacional que nasce o Serviço Social como profissão, tendo efeito, na própria génese e emergência do Serviço Social.
No caso particular do Serviço Social português, a profissionalização dá-se em pleno período ditatorial e assenta, numa forte aliança do Estado Novo com a Igreja, mercê da influência da conjuntura europeia marcada pela guerra civil de Espanha, pelo fascismo e o nazismo. De facto, para Salazar o fortalecimento desta aliança funcionava como estratégia para não deixar que a acção social resvalasse para aquilo que considerava como o “perigo comunista”. Assim, o Serviço Social passava a servir tanto os interesses do Estado, como os da Igreja.
Para a Igreja “interessava que as assistentes sociais entrassem nos meios operários, prestassem assistência, difundissem a Doutrina Social da Igreja, em colaboração com os movimentos da Acção Católica, inserindo-se na estratégia mais ampla de recristianização da sociedade” (Martins; s/d.:47 e 48). Já o Estado queria garantir que os Assistentes Sociais fossem “ dirigentes idóneos, responsáveis e activos cooperadores da Revolução Nacional, racionalizassem e individualizassem a assistência corporativa, dirigida prioritariamente às famílias, moralizando os costumes e contribuíssem para a formação da consciência nacional” (Martins; s/d.:48).
Foi então com a II Guerra Mundial que o Estado Novo reconheceu o estatuto da profissão, considerando-a indispensável ao ponto de a integrar nos serviços públicos (Martins; s/d.:48). Este facto resulta do debate social e político internacional que se centrou sobre os Direitos Humanos e que em paralelo despoletou a construção de sistemas de protecção social. O Estado passou a assumir a responsabilidade e o compromisso de promover o bem-estar da sociedade, legislando e criando serviços de protecção para indivíduos, famílias e grupos de risco.
O reconhecimento e institucionalização da profissão fez emergir a necessidade de introduzir um “carácter técnico ao modelo de actuação profissional e “(…) [um] reforço do papel operativo que consolida o padrão de eficiência” (Mouro; 2001:42) (aperfeiçoamento teórico e metodológico) . O que levou, posteriormente à afirmação de métodos próprios do Serviço Social, surgindo um Serviço Social tripartido (Bartlett; 1993): Serviço Social de Caso; Serviço Social de Grupo e Serviço Social Comunitário.
Antes destes desenvolvimentos e reforços na concepção da intervenção do Serviço Social, este foi-se consolidando, primeiramente, com a própria criação do método Case Work, desenvolvido por Mary Richmond, que preconizava um Serviço Social individualizado, centrado na pessoa e não no meio que a envolve. A partir desse momento, a acção do Serviço Social foi traduzindo um novo posicionamento, defendendo que o Assistente Social não lida com as pessoas e o ambiente, mas sim com indivíduos em relação com as suas experiências sociais e com os sentimentos que têm em relação aos mesmos. Com este posicionamento pretendeu-se estudar a pessoa em relação a um contexto, uma vez que cada caso social é interpretado como um “facto humano” composto por factores internos e externos ou ambientais. (Hamilton; 1958:16). A partir desse momento o Serviço Social constrói-se, consolidando-se numa base científica, orientando-se por significados humanistas e apoiando-se em princípios éticos. Estas características espelham uma sociedade moderna, que defende e impera os Direitos Humanos, a democracia, a justiça social, a igualdade, o progresso da Humanidade e o melhoramento do mundo… a passagem da ordem moral para uma ordem ética.
O Movimento de Reconceptualização como ponto de viragem no Serviço Social
A conjuntura sócio-política que estava na base da institucionalização do Serviço Social entra em crise a partir dos anos 60, obrigando a profissão a reflectir sobre a sua actuação e a questionar-se sobre os alicerces que sustentaram os princípios basilares do Serviço Social. Esta crise produziu novas tensões e novos conflitos com contornos internacionais e impactos civilizacionais que fomentaram a “mundialização da questão social (…) [produzindo] a consciência de novos valores e posturas e a necessidade de uma nova ordem internacional” (Fernandes; 1996:23). Mesmo continuando a proclamar-se os Direitos Humanos e todos os valores e princípios defendidos até então, a sua violação era um facto irrefutável. As desigualdades sociais foram-se agudizando e o capitalismo liberal reinstalou-se.
Contudo, esta crise civilizacional despoletou “o nascimento de uma nova consciência e de novas lutas sociais pelos direitos humanos, articulando aos direitos de liberdade e aos direitos de igualdade, novos direitos – os direitos culturais. [Esta crise promoveu] lutas e movimentos sociais que apontaram para os valores da individualidade e da cidadania à escala do planeta” (Fernandes; 1996:24). E é esta conjuntura que leva diferentes profissões a organizarem-se numa tentativa de reformulação da sua intervenção.
Também o Serviço Social se organizou com o intuito de avaliar, compreender os valores, princípios, teorias que orientassem a sua prática profissional, submetendo a profissão a “um questionamento global: dos seus fundamentos ideo-teóricos, das suas raízes sócio-politicas, da direcção social da prática profissional e do seu modus operandi” (Iamamoto; 2004:206). As práticas desenvolvidas até então eram fundadas essencialmente nas teorias funcionalistas e psicanalíticas que conduziam a intervenção para as dimensões individuais do problema, para explicações de causa-efeito, para uma acção reguladora que promovia a normalização de comportamentos.
Entre a década de 60 e 70, emergem desta reflexão vários movimentos activistas que recusavam a prática instituída no Serviço Social e, assim, propunham alterações conceptuais das quais surgem várias correntes de trabalho social, como o Serviço Social Estrutural e o Serviço Social Radical. Mas na génese destas alterações está um movimento que nasce na América Latina, nos anos 70, que pretendeu criar uma nova abordagem no interior da profissão, tendo ficado conhecido pelo “Movimento de Reconceptualização do Serviço Social”. Com a sua edificação pretendia-se colocar um fim a uma prática profissional fortemente marcada pela dimensão reguladora, normativa e moralizadora, que submetia a sua acção à esfera paliativa e assistencialista, fundamentada em correntes funcionalistas e positivistas, deixando submersas as causas estruturais dos problemas, sobre as quais se enfatizava o “sentir e agir” em oposição ao “pensar e conhecer” (Bartlett; 1993:61).
Com estas transformações na estrutura medular do Serviço Social, desejava-se definir um Serviço Social Alternativo revestido por uma nova perspectiva de intervenção, diferenciada do Serviço Social Tradicional. Acreditava-se na construção colectiva de um projecto ético-politico profissional, regido por um espírito crítico e inovador, no qual se preconizava, para além do abandono do carácter paliativo, assistencialista e burocratizado da intervenção, uma identidade político-ideológica. No fundo, promovia-se uma nova identidade profissional, na qual o Serviço Social poderia analisar o seu papel e significado na sociedade, fomentando uma reconstrução na qual a profissão deveria criar o seu projecto profissional, politizando a sua acção, desenvolvendo uma formação profissional articulada com a investigação e com a prática profissional. Este exercício deveria estar assente num estatuto científico, sustentado em critérios teóricos-metodológicos e apoiado numa visão crítica. (Iamamoto; 2004:209).
Porém, “a negação, apenas do Serviço Social Tradicional (…) não proporcionou o avanço que era anunciado (Karsch; 1998:130), este movimento “nunca se estruturou para além de um pensamento ideológico” (Santos; 1993:172). Daqui resultou aquilo que Iamamoto designou de “duplo dilema até hoje presente na prática profissional: o fatalismo e o messianismo” (2004:213). O fatalismo surge como uma consequência de um discurso hipotecado à resignação, a práticas cristalizadas e imutáveis. Por seu lado, o messianismo utópico privilegia como determinantes da prática profissional “os propósitos (…) [individuais e um] voluntarismo” (Iamamoto; 2004: 213), inviabilizando deste modo a construção colectiva de um projecto ético-político (Netto; s/d:8 e 9) tão reivindicado pelo Movimento de Reconceptualização do Serviço Social.
Hoje, a profissão depara-se com desafios que permanecem, havendo outros que despoletam, tornando-se, por isso, exigível uma resposta profissional reforçada numa acção colectiva, sobre uma prática que não se encontra auto-determinada e que obriga, como chama atenção Netto (2008: 10), a um “debate colectivo, a troca de conhecimentos e embate de ideias [só assim se] pode viabilizar um projecto [sério, comprometido e profissional]”.
(Andreia Carvalho Lameiras; 2010)
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